segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Directivas comunitárias, Administração e Contencioso Administrativo


4 ideias:

- Direito comunitário goza de primado face ao direito português;
- Directivas comunitárias impõem obrigação de resultado aos Estados-membros; efeito directo;
- Administração Portuguesa é também Administração Comunitária; paralelismo com juízes;
- Eventual dever da Administração de aplicar as directivas não transpostas e consequências possíveis;

O assunto que trazemos à discussão apresenta ainda pouco tratamento na doutrina, muito embora tenha de alguma relevância nos dias de hoje, dada a integração nacional num espaço europeu, em que o direito comunitário goza de primado face ao direito interno.
Aliás, a garantia da igualdade e da não discriminação em função da nacionalidade também se faz pela existência do referido primado do direito comunitário face aos direitos dos Estados-membros. Assim, o direito estadual anterior ou posterior ao acto comunitário é inoponível, segundo jurisprudência COSTA/ENEL do TJCE, algo que parece claro quando as directivas estiverem transpostas para o direito interno, e assim plenamente em vigor no ordenamento jurídico do Estado-Membro. De notar que não é reconhecido efeito directo horizontal às directivas – particulares não podem invocar entre si direitos concedidos por directivas ainda não transpostas. É reconhecido o efeito directo vertical desde o acórdão Van Gend en Loos, desde que as normas se apresentem claras e precisas, incondicionais, aptas para produzir efeitos e conferidoras de direitos subjectivos aos particulares sem necessidade de intermediação. No acórdão Faccini-Dori reconhece-se a possibilidade de os particulares exigirem ao Estado o ressarcimento de danos derivados da não transposição da directiva, sendo a responsabilidade nos termos da legislação do Estado. Lá se dizia também que o Estado não pode invocar contra os particulares a inexecução dos seus deveres.
Curiosamente, no caso Factortame, o TJCE reconheceu aos juízes nacionais dos Estados Membros o poder de suspensão da aplicação de direito estadual contrário ao direito comunitário. No acórdão Simmenthal considerou-se também inaplicável o direito estadual contrário ao direito comunitário, algo que tem sido pouco atendido na polémica directiva “recursos”, cujo prazo de transposição já terminou, e que em muito beneficiaria o nosso Contencioso.
Nesta medida, parece fazer sentido também a jurisprudência do TJCE no processo 103/88 que considera que, tal como referimos quanto aos juízes, a Administração deve desaplicar a normatividade interna contrária às disposições de uma directiva cujo prazo de transposição já tenha expirado, na medida em que as disposições da directiva gozem de efeito directo, nos termos acima (não havendo, pois, necessidade de transposição). Reconhece-se a possibilidade de recusa de aplicação de normas internas contrárias a directiva não transposta, algo muito reforçador da ideia de primado! A Administração não pode aplicar contra particulares normas internas que não tenham sido adaptadas de harmonia com a directiva. Há uma especial preocupação com a posição dos particulares, tradicionalmente frágil nas relações com a Administração, que aliás permite a responsabilização do Estado pelos danos sofridos pelo particular, em resultado da não transposição da directiva.
Parece evidente que podemos dizer então que, tal como os juízes nacionais são juízes comunitários, a Administração Portuguesa é Administração comunitária, na medida em que actua como tal, de forma indirecta, na execução administrativa do Direito comunitário. De referir também que o Estado, ao não transpor directivas incorre em incumprimento a nível comunitário, com as consequências que daí derivam.
Assim, trazemos aqui à reflexão a situação em que o Estado não transpôs uma directiva no prazo estabelecido: pode a Administração aplicar as normas, caso estas gozem de efeito directo, desaplicando o direito interno contrário ao texto da directiva? Tal parece fazer algum sentido, pois se assim não for o Estado beneficia do seu incumprimento.
Ainda quanto ao paralelismo com os juízes, levanta-se apenas a questão de, no caso dos tribunais estarmos perante o órgão de soberania com competência para administrar a justiça (202º Constituição), o que não se passa com a Administração. Contudo, a tutela do particular deve prevalecer, e não o incumprimento estadual! E a verdade é que se trata de uma aplicação de normas que deveriam vigorar em Portugal. O apuramento do efeito directo dever-se-á fazer, em prol dos interesses dos particulares, por via da interpretação jurídica das normas, a qual não nos choca que seja realizada pelos juristas da Administração, respeitado o direito de audiência prévia e o dever de fundamentação, e, se for caso disso, a reclamação ou o recurso, consagrados no CPA. Ademais, em caso de interpretação desfavorável, nunca está vedado o acesso aos tribunais…

As implicações da posição defendida são, por exemplo, a possibilidade de impugnar o acto administrativo que não aplique a directiva que goze de efeito directo, com base na sua anulabilidade (135º CPA e 46º/2 a) CPTA), dada a vinculação de aplicar o direito comunitário, e da consequente anulabilidade por violação de lei, na medida em que a directiva não estava transposta, e nos parecer o desvalor adequado, regra geral em Direito Administrativo.
Mais, se a Administração não aplicar a directiva, podemos considerar a possibilidade de propor acção administrativa especial, com pedido de condenação à prática de acto devido (46º/ 2 b) CPTA e 66º CPTA), pois a existir dever, como defendemos, a omissão da Administração seria passível de acção administrativa especial neste sentido!
Os órgãos administrativos gozam, no nosso entendimento, com PAULO OTERO, de um poder de aplicar directivas comunitárias em termos preferenciais às normas internas que regulam a mesma situação, e cujo conteúdo é incompatível com a norma europeia.
Fazemos neste sucinto trabalho uma primeira abordagem, a carecer de maior reflexão, mas que nos parece tratar de tema enorme relevância no contexto actual do Direito Administrativo e do Contencioso Administrativo

Principal BIBLIOGRAFIA consultada:

SILVA, Vasco Pereira da
- “O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise”, 2ª edição, 2009, Almedina;
- “Em busca do acto administrativo perdido”, 1996, Coimbra Editora;

OTERO, Paulo
- “Legalidade e Administração Pública – o sentido da vinculação administrativa à juridicidade, 2003, Almedina;

AMARAL, Diogo Freitas do
- “Curso de Direito Administrativo”, volume II, 2ª edição, 2001, Almedina;

ANDRADE, José Carlos Vieira de
- “Justiça Administrativa (Lições)”, 9ª edição, 2007, Coimbra Editora;

QUADROS, Fausto de
- “Direito da União Europeia”, 2ª edição, 2004, Almedina;

CORDEIRO, António de Menezes
- “Tratado de Direito Civil Português”

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